Avanço histórico: terapia genética freia Doença de Huntington
Pesquisadores britânicos reportaram, no dia 24 de setembro, um marco inédito no tratamento da Doença de Huntington: em um ensaio clínico de terapia genética, o avanço da doença foi reduzido em 75% após três anos de acompanhamento.
A Doença de Huntington é uma enfermidade degenerativa causada por mutação em um único gene, levando à morte progressiva de neurônios, com sintomas como distúrbios de movimento, declínio cognitivo e demência. Até então, não existia tratamento capaz de alterar o curso da doença, apenas terapias para aliviar sintomas.
Na abordagem desenvolvida, os pesquisadores utilizaram um vírus modificado para entregar material genético ao cérebro que bloqueia a produção da proteína mutante tóxica, chamada huntingtina. A entrega foi feita por meio de cirurgia, que pode durar entre 12 e 20 horas, usando microcateteres em duas regiões cerebrais.
Segundo os autores, esse processo é realizado uma única vez.
"Agora tem-se um tratamento para uma das doenças mais terríveis do mundo"
No ensaio, participaram 29 pacientes no Reino Unido e nos EUA, e os que receberam dose elevada da terapia apresentaram os melhores resultados. Além da desaceleração do progresso clínico, foram observadas evidências nos exames de imagem de menor morte neuronal, como níveis reduzidos de neurofilamentos, marcadores de dano aos neurônios.
A coordenadora do estudo, a professora Sarah Tabrizi, sustenta que "agora tem-se um tratamento para uma das doenças mais terríveis do mundo. Isso é absolutamente grandioso”.
Apesar da promessa, especialistas alertam para desafios práticos, como a complexidade e os custos do procedimento, que podem limitar o acesso dos pacientes. A empresa responsável, UniQure, planeja submeter o medicamento para aprovação nos Estados Unidos já no próximo ano.
Tal avanço gera esperança em uma comunidade marcada pela espera de anos até o diagnóstico e pela falta de tratamentos modificadores. O momento representa não apenas um progresso científico, mas também um passo em direção à possibilidade de vida mais longa e funcional para pacientes e suas famílias.
De Feira Grande/AL a Senador Sá/CE: o mapa brasileiro da Doença de Huntington
Durante décadas, o pequeno município de Feira Grande, em Alagoas, observou, impotente, o alastramento de uma enfermidade que causava problemas psiquiátricos em membros de diversas famílias da região. A inexplicável moléstia também parecia estar associada a movimentos involuntários e a casos de declínio cognitivo. O mal que atingia o povoado deixava todos temerosos diante da possibilidade de ser o próximo da linhagem a padecer do problema. A desconhecida moléstia foi então identificada por pesquisadores: trata-se da Doença de Huntington (DH). A cidadezinha já foi apontada como o local com maior prevalência de DH no Brasil. A enfermidade hereditária, usualmente rara e sempre devastadora, atravessou gerações em silêncio, até que a investigação de uma filha da terra, a cirurgiã-dentista e pesquisadora Dra. Aparecida Alencar, revelou o que antes era conhecido apenas como “nervoso”. “Por ser natural do município e conviver com pessoas acometidas pela doença, resolvi investigar, no intuito de descobrir o diagnóstico”, recorda a pesquisadora, membro da Associação Brasil Huntington (ABH). Entre 2001 e 2003, ela mapeou famílias, realizou entrevistas e levantou registros em cartórios. “Montei um heredograma agrupando todos os núcleos familiares e constatamos seis gerações interligadas, com casamentos consanguíneos e famílias numerosas, o que explica a alta incidência”, afirma.
Com o apoio de professores da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), entre eles Ana Maria Lopez, Eneida Lipinski, Guilherme Porciúncula e a médica geneticista Isabella Monlleo, o diagnóstico foi confirmado em 2005. “Até então, só havia conhecimento sobre um cluster desses casos em Ervália (MG). A partir daí, Feira Grande passou a ser o município com maior prevalência de Huntington no país”, explica a Dra. Aparecida.
DESCOBERTA - Mas, nos últimos anos, esse ranking começou a mudar. No norte do Ceará, a cidade de Senador Sá, em especial o distrito rural de Salão, passou a ocupar o topo da lista. O responsável pela descoberta foi o neurologista Dr. Luis Edmundo Teixeira de Arruda Furtado, professor assistente da Uninta Sobral (Centro Universitário Inta). “A origem da doença está no distrito de Salão, onde, no início do século XX, uma família se assentou e deu origem à linhagem na qual a mutação se disseminou. O isolamento geográfico e os casamentos consanguíneos foram determinantes para esse fenômeno populacional”, explicou.
O Dr. Furtado contou que a identificação da alta prevalência surgiu de forma empírica. “A percepção veio pela observação clínica. Em 2015, formamos um grupo de pesquisa e realizamos visitas de campo fazendo heredogramas, aconselhamento genético e assistência médica”, conta. A investigação confirmou que a Doença de Huntington faz parte da realidade de dezenas de famílias na região.
DOMINÂNCIA - A herança genética da DH é autossômica dominante com penetrância completa, o que significa que cada filho de um portador tem 50% de chance de herdar o gene mutado. “Metade dessa prole desenvolve a doença em torno dos 30 anos, quando muitos já têm filhos. Isso perpetua o ciclo e transforma toda a dinâmica familiar em torno do cuidado”, explica Furtado.
O cenário é semelhante ao vivido em Feira Grande, onde o estigma e o medo ainda são fortes. “Descendentes convivem com a dúvida se herdaram ou não o gene. Muitos preferem não pensar no assunto, já que ainda não há cura. Mas falar sobre a doença é essencial para reduzir o preconceito e fortalecer as famílias”, defende a Dra. Aparecida.
Tanto em Alagoas quanto no Ceará, o acesso ao diagnóstico e tratamento ainda é desigual. “O teste genético é caro e pouco disponível pelo SUS. Faltam protocolos e políticas públicas específicas para orientar os profissionais de saúde”, alerta a pesquisadora. No Ceará, segundo o Dr. Furtado, o problema principal é o deslocamento: “Os centros de referência ficam em Fortaleza, a 220 km de Sobral, e a distância dificulta o acompanhamento contínuo”.
AVANÇOS - Mesmo diante dos obstáculos, avanços começam a surgir. Em Sobral/CE, um ambulatório acadêmico dedicado à Doença de Huntington e outras patologias raras foi inaugurado recentemente. Já em Feira Grande, a ABH promove, ocasionalmente, ações educativas em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde, levando informação e treinamento a equipes locais.
Para ambos os especialistas, o caminho para o futuro passa pela informação, pelo aconselhamento genético e pela formação de redes de apoio. “O conhecimento é o principal instrumento para vencer o estigma e transformar a realidade das comunidades afetadas”, afirma a Dra. Aparecida. O Dr. Furtado concorda. “O aconselhamento genético e o tratamento integral, com equipe multidisciplinar, são medidas urgentes. Isso pode mudar o destino de famílias inteiras”, observa.
De Alagoas ao Ceará, a história da Doença de Huntington no Brasil é uma lição sobre ciência, memória e solidariedade. É, também, uma prova de que o conhecimento pode quebrar o ciclo de um século de silêncio.

